Monday, February 29, 2016

Diferentes facetas brasileiras na 66° Berlinale

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Por Sandra Mezzalira Gomes, de Berlim, especial para o JJ

O 66° Festival Internacional de Cinema de Berlim, a Berlinale, encerrou-se neste domingo, mas, para a maioria dos 434 filmes exibidos durante os dez dias de evento, a Berlinale é um início. E para 187 filmes é, literalmente,  “o início”, já que foram exibidos pela primeira vez para o público.

Considerado o principal evento europeu, foram mais de sete mil produções que se inscreveram para participar este ano.  O Brasil não conseguiu estar entre os 18 longas que concorreram ao cobiçado Urso de Ouro, mas esteve presente nas sessões Panorama, Shorts (Curtas) e Forum Expanded.

Na sessão “Panorama”,  o público participa ativamente, votando para o melhor filme. Foi nela em que o Brasil mais marcou presença neste ano.

O longa “Curumim” documentou parte  dos  onze anos que o brasileiro Marco “Curumim” Archer passou na prisão, na Indonésia,  condenado à morte por ter traficado 13 quilos de cocaína escondida nos tubos da sua asa delta. O caso foi noticiado várias vezes no Brasil, e gerou debate sobre a pena de morte.

Com várias cenas filmadas pelo próprio Curumim na Indonésia, intercaladas com reportagens, fotos e filmes de arquivo pessoal no Rio e em outras grandes capitais, depoimentos e cenas produzidas pelo diretor, o resultado foi uma produção atraente e interessante, que induz inevitavelmente à reflexão.

Marcos Prado, o responsável pelo filme, contou para a platéia que é fotógrafo e conheceu Curumim no Rio de Janeiro. Ele, após ser preso, teria então pedido a Marcos para fazer um documentário sobre a vida dele. “Quis humanizar o Curumim e ainda deixar a mensagem dele para os jovens, de não fazerem o que ele fez”, declarou também à imprensa.

Falou ainda sobre a descriminação da maconha e da empatia que foi adquirindo com Curumim nos três anos em que se falaram semanalmente pelo telefone para produzirem o filme.   “Foi o meu primeiro trabalho para o cinema”, disse o cineasta que estreou seu longa de 106 minutos no festival.

Já  Anna Muylaert voltou, pelo segundo ano consecutivo, para Berlim. Desta vez,  em “Mae só há uma”, ela retrata, em oitenta e dois minutos, o drama do adolescente Pierre e sua suposta irmã, que descobrem terem sido roubados na maternidade em São Paulo. Pierre tem então 17 anos e tanto ele quanto a “irmã” foram criados pela “ladra”, a quem consideram mãe.

O drama de Pierre, desde a separação da (até então) sua mãe e irmã, até a integração na nova família biológica, os conflitos gerados pela adaptação e outras dificuldades da sociedade brasileira são ali tematizados. “Existe um grupo de mães que se encontra na Sé para debater o assunto, isso é infelizmente muito comum no Brasil”, comentou o ator principal Naomi Nero,  na última quarta feira, na sessão das 22:30, após ter comparecido também a recepção da Embaixada Brasileira (leia abaixo)  

  A cineasta Anna Muylaert foi agraciada com o prêmio do público na Berlinale de 2015, com o filme “A que horas ela volta?”, no qual abordou a realidade das empregadas domésticas e diferenças sociais. Com Regina Casé no papel principal, o filme teve sucesso e estreou no Brasil apenas alguns meses após a 65° Berlinale. Este ano, ganhou na última sexta-feira um dos troféus da 30° edição do Teddy Awards, prêmio voltado ao público LGBT.

Com belíssimas imagens do Amazonas, Sergio Andrade e Fabio Baldo inspiraram-se  na vida de Anderson, integrante de uma comunidade indígena, que se divide entre a “civilização do homem branco” e a vida e rituais da aldeia, para fazer o longa “Antes o tempo não acabava”.

O jovem se esforça pra se comunicar no dialeto indígena e em português, em conciliar as novas descobertas sob diversos aspectos, em cuidar da família e suas raízes culturais. Sutilmente, o “documentário ficção” expõe, em oitenta e cinco minutos,  fraquezas de funcionários de Ongs e da burocracia brasileira, curiosidades e crueldades de ambas culturas, além de um íntimo olhar no cotidiano de um indígena em Manaus.

Ainda no Panorama, a produção da alemã  Monika Treut “Zona Norte” registrou parte do cotidiano atual no Rio de Janeiro, incluindo os protestos e as Olimpíadas, por meio do Projeto Uerê. Além de explicar o funcionamento da pedagogia adotada pela entidade que trabalha com crianças da favela, o longa mostra em noventa minutos vários aspectos da sociedade brasileira que vive entre o conflito policial-traficante e a luta pela sobrevivência.

No segmento Shorts (Curtas), o Brasil participou com “Das Águas que passam”, de Diego Zon, que conta a história de um pescador no Rio Doce, filmado antes da tragédia ambiental que atingiu o rio, no interior de Minas Gerais.

O casal Melissa Dullius e Gustavo Jahn conseguiram ainda ser selecionado para a sessão Forum Expanded com o longa “Muito Romantico”, uma produção quase que “auto biográfica”, inspirada em suas próprias trajetórias e experiências, trazendo para as telas a dor e delicia de emigrar, explorar um novo mundo e tentar, mesmo assim, continuar caminhando juntos enquanto se amadurece neste processo.

Se, desde 2014, o Brasil não concorre ao cobiçado Urso de Ouro (“Praia do Futuro” foi o último indicado), o pais continua conquistando seu espaço na concorrida Berlinale e estreando trabalhos, que agora estão prontos para serem mostrados à quem quiser ver as suas diversas facetas.

Curiosidades 

Refugiados

Não se pode ignorar a problemática dos refugiados. O diretor da Berlinale, Dieter Kosslick, fez questão de avisar, já na coletiva de imprensa no inicio de fevereiro, que estariam recolhendo donativos e incentivando reflexões sobre o tema. “ Todos têm o direito à felicidade”, ressaltou. 

O “Urso de Ouro” acabou indo para o italiano Fuoccoammare (particularmente, amei o filme!) , que aborda o assunto de forma sensível e cativante.

Estrelas americanas

George Clooney e Maryl Streep foram as “estrelas hollywoodianas” do festival. Ele, estreou a comédia “Hail, Caeser!” na quinta, dia 11, o primeiro dia da Berlinale e aproveitou pra dar pessoalmente uma palavra de apoio à chanceler Angela Merkel , visitando-a na sexta-feira. Ela, Maryl Streep, trabalhando como a presidente do Júri, responsável pela premiação final e participando de vários eventos.

Jundiaí/Campinas

No filme “Mãe só há uma” o nome da cidade de Campinas é citado. No ano passado, no filme Ausência, o personagem principal termina num ônibus a caminho de Jundiaí!...

Recepção

Na última quarta-feira a Embaixada Brasileira de Berlim ofereceu uma recepção para seletos convidados e demais participantes da Berlinale: atores, diretores, produtores, e afins. Com salgadinhos e drinques, durante duas horas foi possível  trocar ideias, experiências e conhecimentos, recepcionados pela embaixadora Maria Luiza Ribeiro Viotti.

Pedalando

No ano passado, fevereiro foi um mês relativamente “quente”, com temperaturas entre 10 a 15 graus. Este ano, muita chuva, frio, vento e até neve, nestes dez dias de festival. Como fica mais fácil ir de bicicleta de um cinema ao outro, foram dez dias de muito exercício físico e desafios para mim e minha bicicleta “Astrid”!... 

Por sorte, a organização da Berlinale percebeu que, em alguns lugares, faltava, inclusive, “estacionamento” , ou seja, lugares pra prender a “bike” durante o cinema. Ou seja, pra pedalar, com este clima, foi muito mais difícil. Mas, pra estacionar, evoluímos! ...

Hollywood é aqui

Em plena exibição do filme alemão “24 Wochen” (24 semanas) uma pessoa passou mal. Os gritos da platéia “médico, um médico por favor”, luzes acesas enquanto o filme continuou passando por alguns minutos, os funcionários e pessoas próximas se movimentando pra socorrer a mesma, os aplausos ao, finalmente, o filme parar, o transporte em maca daquela pessoa que, alguns minutos antes, estava ali, curtindo um filme como todos nós, minutos de silêncio e constrangimento, muitas luzes de celulares simultaneamente iluminando a sala, com a urgência de ser comunicado com o mundo externo o que acontecera, os aplausos ao ser anunciado que voltariam um pouco do filme e a exibição iria então continuar, eu, sentada no camarote do Friedrichstadt -Palast, vendo tudo meio de longe e de perto, sem saber exatamente como agir, me senti numa tela de cinema, onde tudo pode mudar em frações de segundos, num momento extremamente surreal. Hollywood é aqui! ....

Em tempo, tentei obter informações sobre a pessoa que passou  mal, fiquei abalada e me aliviaria saber se está tudo bem, mas não tive respostas.... resta o consolo do ditado “nenhuma notícia, boa notícia”. 

Sonhos e idiomas

Depois de vários filmes num dia (o recorde deste ano foi um dia com três longas e doze curtas!), é interessante como tudo se mistura durante os sonhos. Com a variedade de idiomas, a “salada” fica ainda mais engraçada. Uma surpresa aliás, foi assistir a produção da Romenia  “Hotel Dallas” e entender quase tudo desta língua que é parecida com italiano, português e espanhol.

Cadeiras e cadeiras, cinemas e cinemas

Não conheço um cinema feio em Berlim. Mesmo os pequenos (sim, tem cinemas “minúsculos”), a arquitetura normalmente é linda. Mas bonito não quer dizer pratico. Assim, depois do quinto filme, de uma semana na qual você passará mais horas no cinema do que em qualquer outro lugar, é impossível não perceber a diferença da qualidade de cada sala. 

Imbatível é, para mim, o renovado Zoo Palast, onde as cadeiras se movem, são enormes (ainda mais pra alguém pequena como eu) e tem até cadeira individual! Ou o Colosseum na Schönhauser Alle. Já o tradicionais Berlinaler Palast e Friedrichstadt-Palast, com suas cadeiras duras e apertadas, deixam muito a desejar.

Sentar na primeira fila também pode ser uma “super” vantagem, inclusive de ter os dois lugares ao seu lado também só pra você.... e tudo vai depender da distância da tela com a primeira fila. Apenas em um cinema, no Cinestar, na Potsdamer Platz, tive dor no olho, no pescoço, tonturas e cheguei a cochilar no filme, de tão cansada que fiquei com a proximidade da tela, apesar do filme ser engraçadíssimo.

E ai, mais uma surpresa. Um dia, quase atrasada para o filme no Friedrichstadt-Palast, onde normalmente sentava desconfortavelmente no camarote, fui obrigada a ir pra primeira fila. E descobri então uma “bancada” bem na frente do palco. Ali é mais uma casa de espetáculos do que um cinema e então, as pessoas tiravam os sapatos e colocavam a perna pra cima nesta “bancada” durante o filme!!! 

Desde então, troquei o camarote pela primeira fila, cuidei pra ir ao cinema com meias limpas e apresentáveis, e descobri que nem sempre ir pra baixo e sair do camarote significa piorar! ..

Cinema como arte explicado pelo artista

O discurso do diretor chinês Sherng-Lee Huang no final da apresentação do seu primero longa “Hotel Dallas”, que fez em parceria da esposa, Livia Ungur, mudou definitivamente a minha forma de ver o cinema. Com sua honestidade e simplicidade, agradeceu o privilégio de estar na Berlinale, explicou que a mulher está nos Estados Unidos, grávida do primeiro filho e contou que o longa foi o  primeiro sonho conjunto que se tornou realidade. “Colocamos nesta tela parte das nossas vidas, das nossas ideias, imaginação, visão de vida, parte de nós. Que bom que vocês estão aqui pra prestigiar isso!”, entre outras  belas palavras que me tocaram profundamente. 

Até então, às vezes ficava frustrada, decepcionada, brava com o diretor/diretora do filme por não ter dado o final que eu queria ver, por não entender o que ele/ela quis transmitir, por dormir de tédio no meio de uma projeção....

Esse discurso foi pra mim, como se o artista me explicasse finalmente, em palavras,  a sua arte. Sim, o filme está aí, e eu posso achar bom ou ruim, mas não posso mudar os sonhos e ideias que quiseram transmitir com ele. Nunca vou poder realmente saber o quanto custou cada gota de suor pra trazê-lo às telas, pra fazer um sonho virar realidade, mesmo que o resultado final não me agrade.


Aprender a respeitar isso e olhar os filmes de outras perspectivas foi uma inesquecível, irreversível e valiosa experiência.