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crédito da foto que ilustra a coluna Link Europa no Jornal de Jundiai: MARCIA DE SOUZA LINO
Texto publicado no domingo, três de julho de 2011, no Jornal de Jundiaí.
O essencial é invisível para os olhos
Por Sandra Mezzalira Gomes
A alegria contagiante do riso das duas crianças desviou minha concentração do jornal que eu lia na terça-feira de manhã. A verdade é que as viagens nos transportes públicos costumam ser silenciosas (exceto pelos trens de superfícies que podem ter um chiado super irritante e claro, turistas!), quase todos concentrados nos seus próprios universos, a maioria lendo.
Naquele dia, o trem silencioso se enchia com a risada do garotinho e da garotinha (4 e 2 anos?) que brincavam com seu pai e sua mãe. O pai, falando um pouco alto para os padrões daqui, levantava a menininha no ar e arracava risos dela e do irmão. A mãe também interagia carinhosamente com os três.
Sorri internamente, observando com discrição aquela família que, ao contrário de diversas pessoas naquele trem, não exibiam uma cara amassada de “acabei de acordar”, muito menos parecia se preocupar com o novo dia que estava para ser enfrentado.
Ao pararmos na estação Stadtmitte, meu sorriso interno se transformou em imensa admiração. O pai beijou as crianças, se despediu e, segundos antes de levantar, tirou do bolso um objeto semelhante a uma varinha mágica, inclinou-o para o chão até transformá-lo na sua “bengala” que serviria então para guiá-lo não apenas para desembarcar do trem, como para continuar um dia que parecia rotineiro para a família.
Só então o reconheci. Semanas antes tinha comentado a situação que vivi com meu pai, quando um senhor carregava sua filhinha “de cavalinho” nas costas e o filho caminhava ao lado. A garota, naquela ocasião, deixou cair a tampa da sua garrafa de suco e eu, que também desembarcara na estação Mehringdamm, corri até os três com a tampa na mão para entregá-la.
Alcancei-os na escada rolante, bem no momento em que o pai, orientando-se pela bengala, procurava o caminho, mas o menininho quase “se enroscara”. Ajudei-o a subir a escada, entreguei a tampa da garrafa e só então realmente percebi que ele era cego. Ele agradeceu, as crianças sorriram para mim, me despedi ainda observando o seu esforço carregando a menininha nos ombros, checando se o menino ainda estava ao seu lado e procurando o caminho.
Vários pensamentos passaram pela minha cabeça naquele dia: “quem é a mãe que deixa o pai cego com as duas crianças? Será que ela também é deficiente visual? Quanta coragem ou loucura precisa ter uma pessoa para sair com as crianças assim? Será que ele conseguiria se virar numa outra cidade que não tivesse a mesma estrutura que Berlim tem?”.
Nesta última terça-feira em que tive o prazer de observar a alegria dele, das crianças e da sua esposa, todas estas questões me pareceram insignificantes. Sua mulher parecia enxergar muito bem e estar totalmente satisfeita ao lado de um homem que, além de corajoso ou louco, é carinhoso, feliz e não tem vergonha de mostrar suas limitações, nem de lutar para levar a vida da maneira mais normal possível, apesar das dificuldades. Meus problemas e preocupações também se tornaram mínimos com esta inspiradora vivência.
Ele desceu na Stadtmitte, despedindo-se com um “tenham um bom dia” bem alto para sua família. Na parada seguinte da linha U6, na Fransösiche Strasse, a mulher ajeitou a menina no carrinho, arrumou a mochilinha nas costas do menino e desceu do trem. A última cena que vi foi a garotinha colocando cuidadosamente seus óculos escuros para se proteger do sol e conseguir enxergar bem. Apesar de provavelmente já ter aprendido com o pai, desde pequena, que o essencial é invisível para os olhos.
E-mail para contato infobrasa@gmx.de
Monday, July 04, 2011
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